quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Assim termina a humanidade - parte 2


Cheguei à Fundação Oswaldo Cruz e procurei pelo Dr. Aníbal do Nascimento, responsável pelo desenvolvimento da pesquisa para achar a cura da Doença de Chagas utilizando substâncias produzidas pelo ouriço-cacheiro. Mal sabe ele que descobrirá a cura para outra doença, mas já será tarde demais. Consigo chegar até ele e começo a contar minha história. Tenho que começar devagar para não prejudicar a missão. Começo dizendo que sou um cientista de São Paulo que admira muito o trabalho dele e pergunto se ele está familiarizado com o conceito de viagem no tempo. Ele começa a rir. Então eu comento sobre o acelerador de partículas da Europa , que o seu desenvolvimento permitirá construir uma máquina do tempo e entro em detalhes do projeto, o teletransporte e a quarta dimensão. Ele não para de rir. Entrego a ele um jornal velho que trago no bolso. Ele para de rir e pergunta se estou querendo fazer alguma brincadeira de mau gosto. O jornal é de 12/09/2001 e mostra as torres gêmeas de Nova York sendo atingidas por aviões. Após olhar atentamente o jornal ele diz que precisa pensar e pede que eu me retire. Vou embora, mas antes digo que voltarei no dia 12, para continuar a nossa conversa.

Já está anoitecendo. Dirijo-me ao centro do Rio, alugo um quarto de hotel e pela primeira vez fico feliz pelo plano real ter dado certo, porque as minhas novas notas de real são as mesmas de 2001, espero que não dê tempo de repararem na data de emissão, até que minha missão seja concluída. O melhor que eu faria era ficar trancado no quarto do hotel, saindo apenas para me alimentar, evitando assim qualquer alteração no fluxo temporal. A prudência fica me dizendo o tempo todo para não sair, mas a vontade de ver pessoas e respirar o ar puro é mais forte que a cautela. Vou até a orla marítima passear pelo calçadão de Copacabana. Vejo pessoas de todas as idades passeando e se divertindo, mas quando vejo as crianças meus olhos enchem-se de lágrimas. Todas estarão mortas em quarenta anos. Volto para o hotel e não consigo dormir. Fico mais dois dias vendo televisão e a única coisa que enxergo em tudo é a perda de tempo. Tempo que eu não tenho. Tempo que ninguém terá.

12/09. Volto para a Fundação Oswaldo Cruz e o Dr. Aníbal, diz que temos que sair o mais rápido possível dali, sem dar maiores explicações. Tarde demais. Quando saímos do laboratório, vários agentes da polícia federal estão nos aguardando. Somos colocados em um carro, encapuzados e levados para um lugar desconhecido. Quando tiram os capuzes de nossas cabeças estamos numa cela suja, sem ninguém por perto. Os agentes saem, olho para o cientista e peço para que ele me ouça com muita atenção. Não temos tempo. Continua...

Leia a primeira parte.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Savana.


Eu fecho os olhos e imediatamente lembro do cheiro da savana. Meu pensamento me leva a quilômetros de distância e me vejo filhote brincando com meus irmãos. Corro por todos os lados, pela vegetação rasteira, algumas vezes pelas matas, outras próximo dos rios. Lembro da minha mãe, sempre cuidando de nós, seja nos alimentando ou nos vigiando e lembro do meu pai sempre à distância, sempre soberano. Lembro da minha adolescência, quando meus instintos me levavam a combater outros machos da minha espécie, pela supremacia do território.

Lembro de todas as vezes que tentei combater meu pai, mas ele ainda era forte e experiente, mas em cada uma das nossas batalhas ele ficava mais fraco. Lembro-me do dia no qual tive que expulsar meu pai, velho e combalido, da convivência do bando, agora liderado por mim. Lembro também da morte da minha mãe, um sentimento ambíguo de perda e indiferença. Agora eu tinha muitas fêmeas para satisfazer minhas vontades e muitos filhos pelos quais eu nutria uma raiva inexplicável.

Até que um dia eu vi o homem. Lembro do terror que senti quando vi meus pares caindo inconscientes ou mortos, com um simples estrondo causado pelos homens e suas ferramentas de morte. Lembro que consegui fugir algumas vezes, até que um dia, ainda jovem, recebi um impacto no dorso e comecei a me sentir cansado, sonolento, até perder a consciência.

Quando abri os olhos já estava aqui, neste lugar estranho. Ao invés da vegetação da savana, existe uma vegetação verde que agride meus pés. Ao invés da água do rio, a água é muito limpa e tem um gosto estranho. Ao invés do gosto de sangue da carne da caça, tive que me acostumar a comer uma carne estranha, morta há muito tempo. Minhas parceiras não caçam mais. Vivem movendo-se pra lá e pra cá, nesta prisão na qual vivemos.

O que mais me entristece são os homens. Eles vem aqui dia após dia e ficam nos observando, jogando objetos, gritando, fazendo com que seus filhotes nos incomodem. E eu penso, pra que? Nos primeiros dias, ficava agitado e urrava de raiva, andando de um lado para outro. Percebi com o tempo que isso não os incomodava, aliás, eles ficavam muito excitados com minhas atitudes de ira. Então fiquei quieto, me acomodei com a situação. De vez em quando os homens me acertam novamente no dorso, eu durmo e quando acordo, sinto que estou com algo diferente.

Infelizmente, esta prisão não tem saída, ficarei aqui até minha morte, não tenho vontade de procriar e não passarei pelos rituais da velhice, quando outros jovens me desafiarão até a morte. Por isso, todos os dias, sem exceção, eu deito nesta vegetação verde, fecho os olhos e imediatamente lembro do cheiro da savana.

Texto publicado originalmente no blog Divã do Masini em 22/10/2008.

Imagens: Google.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Era uma vez...

...um país governado por um rei que não chegava a ser um tirano, mas que também não era um bom governante. As pessoas passavam por dificuldades, as cidades estavam mal conservadas, os camponeses não conseguiam ganhar dinheiro com as suas colheitas e os impostos eram cada vez mais altos.

Havia um príncipe que queria assumir o trono, prometendo aos quatro ventos que se ele fosse rei tudo mudaria, a população seria mais feliz e bem sucedida. Embora tenha caído no gosto da população, não conseguiu o apoio popular que necessitava para sua empreitada. Partiu então para uma disputa nos bastidores do reino conseguindo dois aliados de peso, o primeiro-ministro e o bobo da corte. O primeiro-ministro era um homem honrado e competente, mas insatisfeito com os rumos daquele governo que não ajudava o povo e faria de tudo que estivesse ao seu alcance para que o rei não conseguisse apoio de seus pares para permanecer no poder. O bobo da corte, apesar de manter-se por muitos anos fiel e íntegro ao seu rei também estava insatisfeito, e por sua vez era um informante valioso que sabia de tudo que se passava em todas as instâncias do reino. De bobo mesmo só possuía a alcunha.

Depois de três anos de disputas o rei não conseguiu se manter e abdicou do trono, dando lugar ao príncipe, que foi alçado ao trono com todas as glórias inerentes ao cargo.

Seu governo foi aos poucos se consolidando e trazendo muita fartura e estabilidade ao reino, o povo estava satisfeito e feliz e seus pares no governo sentiam-se seguros. Porém, estranhamente, ele começou a desqualificar sutilmente os trabalhos do primeiro-ministro, começou a deixá-lo de lado nos momentos importantes e apreciá-lo apenas nas frugalidades. Sentindo-se desprestigiado, o ministro retirou-se da vida pública e buscou outro lugar para exercer suas funções com dignidade. Era um homem honrado na acepção da palavra.

A mesma coisa aconteceu com o bobo da corte, seus serviços de animação eram ignorados e ele era solicitado somente quando possuía alguma informação de valia para o soberano. De informante valoroso passou a ser um mero fofoqueiro. Privado da atividade que mais gostava, o bobo da corte não teve a mesma atitude que o primeiro-ministro, ele continuou na corte, porém minando a força do rei aos poucos através dos seus contatos.

Demorou algum tempo, mas o novo rei foi perdendo aliados de todos os lados do reino e teve que ceder lugar ao seu irmão mais novo. Felizmente o novo rei também era competente e, além disso, tinha um coração mais generoso, seu reinado foi muito bom e durou muitos anos. A diferença é que ele manteve todos os seus asseclas leais junto dele, chamou o antigo primeiro-ministro de volta e nomeou o bobo da corte, ministro da cultura.

Moral da história: a lealdade deve ser tratada com o respeito que merece, ou ela pode se voltar contra você.

Texto publicado originalmente no blog Divã do Masini em 04/06/2008.

Requiém.

Abro a janela do meu carro e jogo o papel de bala na rua. Um transeunte me olha com cara de desaprovação, mas provavelmente também deixa lixo na rua todos os dias e eu é que não vou ser mais um salvador da humanidade. Fiquei a vida inteira guardando papeizinhos nos bolsos, colocando saquinho de lixo no carro e pra quê? Pra ver todos os dias sem falta, sofás, colchões e garrafas PET boiando no rio Pinheiros. Porque preservar alguma coisa se desde pequenos, todos os cidadãos dessa terra são educados a jogar seus dejetos nas ruas. Que se dane! A partir de hoje meu carro e meus bolsos sempre andarão limpos. Eu vou morrer mesmo.

Trabalhei a vida inteira para criar dois filhos inúteis. Dei a melhor alimentação, os melhores médicos, a melhor educação, proporcionei viagens para que eles aprendessem outros idiomas e o que isso adiantou. O caçula só quer saber de baladas e de comprar carros novos para mostrar aos amigos, igualmente inúteis. A mais velha só quer saber de shoppings e compras. Quando vão à empresa que será deles daqui a alguns anos, só sabem desfilar e receber elogios dos medrosos que não querem perder o emprego ao contrariá-los, mesmo sabendo que algumas decisões tomadas pelos dois são idiotas e podem gerar prejuízo para a empresa. Que se dane! O problema agora é deles, eu já fiz a minha parte. Eu vou morrer mesmo.

Casei com uma mulher que nunca gostou de mim. Conheci-a quando já tinha alguns bens e a empresa já estava consolidada. Pensei que tinha encontrado o amor da minha vida. Nunca a traí. Porém, com o passar do tempo, ela mostrou sua verdadeira cara. Nos momentos de crise apenas me atacava, nunca perguntou se poderia ajudar em algo. Seus únicos pensamentos são manter o status de socialite e sair nas melhores revistas e fazer plásticas. Santo Deus! Se ela soubesse o quanto está ridícula com aquela cara esticada, paralisada pelo botox e aqueles seios falsos, não sairia nem as ruas. Mas não, toda semana ele tem que aparecer em alguma revista, coluna de jornal ou site de fofocas. Hoje mesmo vou arranjar uma amante. Que se dane! Hoje mesmo vou arranjar uma amante. Eu vou morrer mesmo.

Meus amigos são todos interesseiros sem exceção. Só aparecem nas festas, nos campos de golfe, nas reuniões para tratar de negócios, nos happy hours e nas festas de confraternização. As únicas amizades que fazemos de verdade são aquelas da infância, porque são feitas sem nenhum interesse, apenas para conversar, brincar e aprontar. Mas essas eu perdi quando subi na vida, porque a origem humilde de todos e que também foi a minha acabou afastando-os quando alcancei certo status social. Na minha ingenuidade, pensei que isso não impediria a manutenção dos laços de amizade, mas fui derrotado pelo preconceito e a incompreensão das pessoas. Que se dane! No próximo churrasco, vou chamar todos os meus amigos da escola, pobre, miseráveis ou não. Eu vou morrer mesmo.

Quando montei a minha empresa não tinha idéia de que ela se tornaria uma das maiores do Brasil. Apenas queria ter uma fonte de renda que me desse conforto e pudesse empregar alguns trabalhadores. Mas a gente nunca está satisfeito com o que tem e sempre quer mais, pensando que um monte de dinheiro pode curar todas as feridas. Hoje, quando passo pelos corredores da empresa, vejo muitos funcionários dos quais não sei nem o nome. Muitos devem acreditar que me cumprimentando ou sendo simpáticos poderão ter alguma oportunidade, embora isso só ocorra em novelas. Infelizmente eles terão que ficar subordinados aos seus chefes, em sua maioria medíocres, que nunca enxergarão na verdade o potencial que cada um tem e a contribuição que poderiam dar a empresa. Quando participo das incansáveis reuniões de diretoria, vejo 80% de bajuladores que apenas balançam a cabeça, 15% de alpinistas que só pensam em pisar na cabeça dos outros para subir de cargo e 5% que realmente querem fazer alguma contribuição. Deixo tudo isso para os meus dois filhos que com certeza falirão a empresa. Que se dane! Deixo tudo isso para os meus dois filhos que com certeza falirão a empresa. Eu vou morrer mesmo.

Ao nos darmos conta de nossa mortalidade, revemos tudo aquilo que imaginamos para nossa vida e comparamos os sonhos à realidade. Na maioria das vezes, os sonhos não se realizam ou apenas se realizam em parte. O mais importante na vida é deixarmos um legado, algo a ser seguido por outras pessoas ou por nossos filhos. Na maioria das vezes construímos empresas pensando que essa será nossa contribuição, mas quando olhamos para elas, são apenas máquinas vorazes de ganhar dinheiro, que não se importam com seus funcionários, sua comunidade, somente com sua sobrevivência.

Quando vejo que a única coisa que realmente construí foi isso, eu choro e espero ela chegar numa noite escura, numa tarde chuvosa, num dia de sol ou numa manhã de inverno, com sua foice e sua capa escura. Pensando bem, se a morte aparecer desse jeito mesmo, a única coisa que tentarei fazer é dar risada, porque essa imagem que foi criada e difundida é ridícula, parece um monge fazendeiro ou coisa que o valha. Acho que a morte deve ser algo como dormir um sono profundo sem direito a sonhos ou pesadelos. A única coisa da qual tenho certeza absoluta é que meu tempo acabou e agora é tarde pra se arrepender.

Imagens: Google.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Assim termina a humanidade. – parte 1



2041. Estou sozinho atravessando o atlântico para encontrar com os outros seis sobreviventes. Eles estão reunidos num laboratório secreto localizado nos subterrâneos da França. Pouca gente sabe, mas quando ativaram o gigantesco acelerador de partículas subatômicas em 2010, os cientistas começaram a desenvolver um protótipo de máquina do tempo. Até agora eles só tinham fito experiências bem sucedidas com ratos, coelhos, gatos e por último com um chimpanzé. Não houve tempo para os testes em humanos. Quando o primeiro teste seria realizado, o pior já tinha ocorrido.

Pouso o avião no aeroporto Charles De Gaulle e sinto a estranheza de encontrá-lo totalmente vazio, ao contrário do que ocorre nas ruas. O cheiro é insuportável. Corpos e mais corpos espalhados por toda a parte. Isso está ocorrendo em todos os lugares e no Brasil não é diferente. Saí de lá observando a mesma cena. O pior são os animais se alimentando dos restos mortais dos humanos. Estou com a arma em punho para o caso de me deparar com algum lobo, urso ou algum carnívoro que escapou do zoológico. Agora eles são os reis do mundo. Após pegar um carro emprestado de alguém que nunca vai pedi-lo de volta, chego ao meu destino. Todos nós usamos roupas protetoras e não ousamos tirá-las para nada.

A minha escolha para viajar no tempo foi óbvia já que a viagem terá como destino o Brasil do ano 2001. Escolhemos dias antes dos ataques de 11/09 para podermos convencer nosso alvo do que estávamos falando. A máquina do tempo é uma esfera, assim como a maioria imaginada pelos falecidos escritores de ficção científica. Ao contrário do Exterminador do Futuro, eu posso entrar vestido dentro dela. A esfera metálica é fechada e programada para 09/09/2001, 1h00 AM. Infelizmente eu teria que voltar, contrariando meu desejo de permanecer em 2001, para evitar o risco de um colapso no tempo se eu encontrasse com meu eu do passado. Quando a esfera começa a acelerar eu apago.

Quando eu acordo me sinto muito tonto. Luto para abrir a porta da cápsula e rezo para não estar no meio de uma favela. Como previsto por meus colegas, eu aterrissei numa parte escondida da Floresta da Tijuca, porém muito próxima á uma rodovia. Tirei meu traje protetor e pude sentir novamente o ar puro em meus pulmões. Felizmente a moda não evoluiu muito nos últimos anos e acabou virando um pastiche de padrões anteriores, sempre se repetindo. Então usei o clássico jeans, uma camiseta, uma blusa de moletom e um tênis. Peguei minha lanterna, me dirigi até a estrada para tentar uma carona até o meu destino: a Fundação Oswaldo Cruz. Continua...

Imagens: Google.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

O Portão.


Tiago tinha ouvido um barulho estranho na garagem naquela noite. Era um barulho pequeno e persistente, que não permitia que ele adormecesse novamente. Ele estava naquele estado entre o sono e o despertar, quando seu corpo ainda não decidiu o que fazer realmente. Ele olhou para o lado e viu sua esposa dormindo tranquilamente. Seu filho também estava dormindo, já que não estava entre eles como costumava fazer ao acordar de madrugada. Ele tentou apurar a audição para descobrir a origem do barulho, sem ter que levantar, trocar de roupa e sentir o frio do outono. Mas de repente o barulho cessou e ai ele pôde voltar a dormir.

Robinho é chamado de catador de papelão. Na verdade catador de papelão é um modo genérico de qualificá-lo, porque todo tipo de material reciclável ele recolhe. Já fez de tudo na vida, foi carpinteiro, estivador, cobrador de lotação, teve um ferro-velho e virou catador. Esta última passagem de dono de ferro-velho para catador ocorreu por causa da receptação de produtos roubados, que davam muito dinheiro, enquanto não haviam sido descobertos pela polícia. Assim, para pagar as despesas com o advogado, passou o ferro-velho pra frente e para não ficar sem atividade, combinou com o novo dono que iria recolher objetos indesejados nas ruas e trazê-los para seu antigo domínio.

Naquele mês, Robinho estava sem sorte. Ele não estava conseguindo recolher muitas coisas nas ruas e o dinheiro não estava dando para pagar as contas. Ele na verdade não tinha muitas despesas, morava num barraco alugado por um quarto de salário mínimo, a luz e a água vinham de ligações clandestinas. Suas roupas eram conseguidas nas suas captações diárias ou compradas em brechós. Seus gastos basicamente eram com alimentação, mas naquele mês, estava difícil conseguir alguma coisa.

O dia estava muito frio e Robinho se arrependeu de não ter pegado uma blusa. Ele tentava andar rápido para se aquecer, mas ao mesmo tempo o estômago vazio deixava-o tonto, então ele não tinha muitas alternativas. Foi quando ele viu uma casa com a garagem recém-reformada e ficou interessado no estranho jeito como improvisaram a instalação do portão. Era uma estrutura de ferro, daquelas antigas com hastes cilíndricas paralelas e com lanças nas pontas. Robinho deduziu que após a colocação dos novos azulejos nas paredes da garagem, somados a uma nova cobertura de argamassa e o rejunte para fixar o azulejo, as paredes ficaram maiores e o portão não coube novamente na sua posição original. O proprietário então amarrou o portão com arames presos em alguns pregos fixados de forma a não estragar os azulejos e posicionou as fixações inferiores em buracos feitos na calçada, que ainda era feita de um cimentado cru e rústico. Robinho enxergou naquele portão totalmente destoante da garagem uma oportunidade de parar o ronco insistente no seu estômago.

Tiago levantou naquela manhã, bem descansado, sem lembrar-se do barulho que o acordou no meio da noite. Tomou banho, trocou de roupa e ligou a televisão para assistir ao noticiário, antes de sair para comprar pão. Sua esposa também levantou, assim como seu filho, que estava se arrumando para ir ao colégio. Tiago se levantou do sofá, pegou as moedas que costumava deixar em cima da geladeira e saiu para comprar pão. Qual não foi sua surpresa, quando viu que uma parte dos arames que prendiam seu portão estavam soltos, deixando-o entreaberto. Foi aí que ele se lembrou do barulho noturno.

Robinho decidiu que naquela noite, na madrugada, entre duas e três da manhã, voltaria naquela rua e levaria embora aquele portão. Ele achava que estaria fazendo um favor ao dono da casa, pois o portão não tinha muito a ver com a casa nova, que precisava de um portão igualmente novo, combinando assim com a reforma. Sua ação faria com que o dono comprasse um portão novo e o dinheiro que ele receberia pelo portão, seria suficiente para que ele passasse aquela semana mais tranqüilo. Ele foi dormir bem cedo e colocou o velho despertador de corda para tocar.

Voltando da padaria, Tiago viu alguém em frente a sua casa. Apressou o passo, mas logo percebeu que era seu vizinho Bruno que o aguardava. – Fala Tiagão! Escuta aí, eu sei quem foi o maluco que tava mexendo no seu portão ontem de noite!

A rua estava totalmente vazia e apenas uma casa, distante 20 metros de onde Robinho ia agir, estava com a TV ligada. Robinho observou bem a casa do portão improvisado e viu que o silêncio era completo, então ele tirou uma turquesa grande de dentro do seu carrinho e começou a tirar os arames. O serviço estava sendo fácil, pois os arames eram do tipo recozido utilizado em construções, então era só torcer com a turquesa que eles rompiam. Ele olhou para a parte pela qual iria começar o trabalho e viu que havia quatro feixes de arame para partir e percebeu que o portão não cairia, pois estava bem fixado ao chão, facilitando assim seu trabalho. Porém, conforme Robinho ia partindo as finas tiras de arame, algo em seu coração dizia que aquilo era errado. Após concluir a retirada da terceira tira, ele vislumbrou a última e quase desistiu, mas mesmo assim continuou até terminar aquela parte. Quando ele soltou a última tira, o portão pendeu para frente quase caindo, mas como ele havia previsto, ele ficou preso nas fixações inferiores e resistiu à queda. Neste momento, Robinho desistiu. Ele nunca tinha roubado nada e aquilo estava errado, não era assim que ele deveria agir. Ele até achou irônico agir da mesma forma que as pessoas que vendiam a ele produtos roubados, quando ainda era dono do ferro-velho. Quando ele se virou para colocar a turquesa dentro do carrinho e ir embora, um vulto na janela da casa do lado oposto da rua, olhava diretamente para ele.

Enfurecido Tiago perguntou novamente para Bruno, - Tem certeza Bruninho? Bruno afirmou: - Tenho sim Tiagão! Foi aquele filha-da-puta que cata papelão e passa aqui todo dia de manhã. Eu vi ele tirando todos os arame. Eu fiquei na manha na janela e já tava pronto pra liga pros homi, mas aí ele me viu e vazou, então eu desisti, porque chamá polícia naquela hora, ia dá só dor de cabeça. Te acordar também não ia adiantar nada, até eu por uma roupa, sair de casa e tudo o mais, ele já ia tá longe. Tiago continuava bravo e disse: - Cê devia ter me chamado, eu ia dar um coro naquele safado!

Robinho correu como nunca havia feito em toda a sua vida, sua sorte é que logo na saída da rua, havia um ladeira íngreme e ele pode ir como passageiro no carrinho, fazendo um pêndulo para deixar as rodas traseiras livres. Chegando em casa, ele só esperou a polícia chegar, porque tinha certeza que o haviam reconhecido. Porém para sua surpresa, ninguém apareceu. No outro dia ele não saiu para trabalhar. Demorou ainda mais dois dias, até ter coragem de sair à rua. Quando saiu, evitou a região próxima daquela rua. Porém uma dúvida ainda pairava sobre sua cabeça, será que tinham mesmo visto ele? Ele viu um vulto na janela, mas a luz estava apagada, a única iluminação era a da rua. Aquilo podia muito bem ter sido sua imaginação, mas o que mais o deixava com certeza da impunidade era ninguém ter procurado por ele. O tempo só lha dava mais certeza de tudo não passara de ilusão. Quatro meses depois, ele achou que poderia voltar a freqüentar novamente as redondezas daquela casa, principalmente porque lá era o local onde ele conseguia mais sucata.

Desde aquela manhã quando Bruno esclareceu-o sobre o ocorrido, Tiago ficava no portão esperando pelo catador de papelão todas as manhãs. Ele não foi à Polícia, pois achou que eles têm coisas mais importantes a fazer. Não foi atrás do catador, porque também poderiam avisá-lo e ele fugiria. Com o tempo, ele ficaria mais confiante, apareceria e aprenderia a não mexer mais nas coisas alheias. Tiago estava juntando dinheiro para comprar um novo portão porque a reforma tinha ficado muito cara e acabou com todos os seus recursos. Assim que tivesse todo o dinheiro da entrada, venderia o portão antigo, para ajudar no pagamento do novo. Se o portão tivesse sido roubado, todos os seus planos iriam por água abaixo e esse era um motivo que não deixava a raiva de Tiago amainar.

Bruno acordou mais cedo naquela manhã e ao olhar pela janela, percebeu que Tiago estava no portão. Ele então se aprontou e foi ver se o amigo ainda estava naquela espera vazia ao delinqüente que havia tentado roubá-lo. – Desencana Tiagão! O cara não vai aparecer. Como se fosse uma afronta aos dois amigos, o catador de papelão apontou seu carrinho na esquina da rua. Os dois saíram em disparada correndo atrás de Robinho que deixou o carrinho de papelão lotado e saiu em disparada o mais rápido que pode. Robinho tropeçou e os dois amigos o alcançaram. Sem dizer uma única palavra, foram batendo em Robinho e descontando toda a raiva que tinha acumulado durante aqueles quatro meses. Ele apanhou durante trinta minutos, foi socorrido duas horas depois, chegou ao hospital quatro horas depois e demorou mais duas horas para ser atendido, levou cinqüenta e oito pontos e os dois braços foram engessados. Depois de três dias em coma, Robinho morreu. Nenhum parente ou amigo reclamou o corpo. Foi enterrado como indigente três dias depois. Ninguém viu quem o espancou.

Tiago e Bruno voltaram pra casa, lavaram as mãos e foram trabalhar. Até hoje comentam sobre a surra que deram no ladrão que tentou roubar o portão de Tiago. Três meses depois Tiago mandou instalar o portão novo. O portão velho foi parar no ferro-velho que um dia pertenceu a Robinho.