quarta-feira, 29 de abril de 2009

O Portão.


Tiago tinha ouvido um barulho estranho na garagem naquela noite. Era um barulho pequeno e persistente, que não permitia que ele adormecesse novamente. Ele estava naquele estado entre o sono e o despertar, quando seu corpo ainda não decidiu o que fazer realmente. Ele olhou para o lado e viu sua esposa dormindo tranquilamente. Seu filho também estava dormindo, já que não estava entre eles como costumava fazer ao acordar de madrugada. Ele tentou apurar a audição para descobrir a origem do barulho, sem ter que levantar, trocar de roupa e sentir o frio do outono. Mas de repente o barulho cessou e ai ele pôde voltar a dormir.

Robinho é chamado de catador de papelão. Na verdade catador de papelão é um modo genérico de qualificá-lo, porque todo tipo de material reciclável ele recolhe. Já fez de tudo na vida, foi carpinteiro, estivador, cobrador de lotação, teve um ferro-velho e virou catador. Esta última passagem de dono de ferro-velho para catador ocorreu por causa da receptação de produtos roubados, que davam muito dinheiro, enquanto não haviam sido descobertos pela polícia. Assim, para pagar as despesas com o advogado, passou o ferro-velho pra frente e para não ficar sem atividade, combinou com o novo dono que iria recolher objetos indesejados nas ruas e trazê-los para seu antigo domínio.

Naquele mês, Robinho estava sem sorte. Ele não estava conseguindo recolher muitas coisas nas ruas e o dinheiro não estava dando para pagar as contas. Ele na verdade não tinha muitas despesas, morava num barraco alugado por um quarto de salário mínimo, a luz e a água vinham de ligações clandestinas. Suas roupas eram conseguidas nas suas captações diárias ou compradas em brechós. Seus gastos basicamente eram com alimentação, mas naquele mês, estava difícil conseguir alguma coisa.

O dia estava muito frio e Robinho se arrependeu de não ter pegado uma blusa. Ele tentava andar rápido para se aquecer, mas ao mesmo tempo o estômago vazio deixava-o tonto, então ele não tinha muitas alternativas. Foi quando ele viu uma casa com a garagem recém-reformada e ficou interessado no estranho jeito como improvisaram a instalação do portão. Era uma estrutura de ferro, daquelas antigas com hastes cilíndricas paralelas e com lanças nas pontas. Robinho deduziu que após a colocação dos novos azulejos nas paredes da garagem, somados a uma nova cobertura de argamassa e o rejunte para fixar o azulejo, as paredes ficaram maiores e o portão não coube novamente na sua posição original. O proprietário então amarrou o portão com arames presos em alguns pregos fixados de forma a não estragar os azulejos e posicionou as fixações inferiores em buracos feitos na calçada, que ainda era feita de um cimentado cru e rústico. Robinho enxergou naquele portão totalmente destoante da garagem uma oportunidade de parar o ronco insistente no seu estômago.

Tiago levantou naquela manhã, bem descansado, sem lembrar-se do barulho que o acordou no meio da noite. Tomou banho, trocou de roupa e ligou a televisão para assistir ao noticiário, antes de sair para comprar pão. Sua esposa também levantou, assim como seu filho, que estava se arrumando para ir ao colégio. Tiago se levantou do sofá, pegou as moedas que costumava deixar em cima da geladeira e saiu para comprar pão. Qual não foi sua surpresa, quando viu que uma parte dos arames que prendiam seu portão estavam soltos, deixando-o entreaberto. Foi aí que ele se lembrou do barulho noturno.

Robinho decidiu que naquela noite, na madrugada, entre duas e três da manhã, voltaria naquela rua e levaria embora aquele portão. Ele achava que estaria fazendo um favor ao dono da casa, pois o portão não tinha muito a ver com a casa nova, que precisava de um portão igualmente novo, combinando assim com a reforma. Sua ação faria com que o dono comprasse um portão novo e o dinheiro que ele receberia pelo portão, seria suficiente para que ele passasse aquela semana mais tranqüilo. Ele foi dormir bem cedo e colocou o velho despertador de corda para tocar.

Voltando da padaria, Tiago viu alguém em frente a sua casa. Apressou o passo, mas logo percebeu que era seu vizinho Bruno que o aguardava. – Fala Tiagão! Escuta aí, eu sei quem foi o maluco que tava mexendo no seu portão ontem de noite!

A rua estava totalmente vazia e apenas uma casa, distante 20 metros de onde Robinho ia agir, estava com a TV ligada. Robinho observou bem a casa do portão improvisado e viu que o silêncio era completo, então ele tirou uma turquesa grande de dentro do seu carrinho e começou a tirar os arames. O serviço estava sendo fácil, pois os arames eram do tipo recozido utilizado em construções, então era só torcer com a turquesa que eles rompiam. Ele olhou para a parte pela qual iria começar o trabalho e viu que havia quatro feixes de arame para partir e percebeu que o portão não cairia, pois estava bem fixado ao chão, facilitando assim seu trabalho. Porém, conforme Robinho ia partindo as finas tiras de arame, algo em seu coração dizia que aquilo era errado. Após concluir a retirada da terceira tira, ele vislumbrou a última e quase desistiu, mas mesmo assim continuou até terminar aquela parte. Quando ele soltou a última tira, o portão pendeu para frente quase caindo, mas como ele havia previsto, ele ficou preso nas fixações inferiores e resistiu à queda. Neste momento, Robinho desistiu. Ele nunca tinha roubado nada e aquilo estava errado, não era assim que ele deveria agir. Ele até achou irônico agir da mesma forma que as pessoas que vendiam a ele produtos roubados, quando ainda era dono do ferro-velho. Quando ele se virou para colocar a turquesa dentro do carrinho e ir embora, um vulto na janela da casa do lado oposto da rua, olhava diretamente para ele.

Enfurecido Tiago perguntou novamente para Bruno, - Tem certeza Bruninho? Bruno afirmou: - Tenho sim Tiagão! Foi aquele filha-da-puta que cata papelão e passa aqui todo dia de manhã. Eu vi ele tirando todos os arame. Eu fiquei na manha na janela e já tava pronto pra liga pros homi, mas aí ele me viu e vazou, então eu desisti, porque chamá polícia naquela hora, ia dá só dor de cabeça. Te acordar também não ia adiantar nada, até eu por uma roupa, sair de casa e tudo o mais, ele já ia tá longe. Tiago continuava bravo e disse: - Cê devia ter me chamado, eu ia dar um coro naquele safado!

Robinho correu como nunca havia feito em toda a sua vida, sua sorte é que logo na saída da rua, havia um ladeira íngreme e ele pode ir como passageiro no carrinho, fazendo um pêndulo para deixar as rodas traseiras livres. Chegando em casa, ele só esperou a polícia chegar, porque tinha certeza que o haviam reconhecido. Porém para sua surpresa, ninguém apareceu. No outro dia ele não saiu para trabalhar. Demorou ainda mais dois dias, até ter coragem de sair à rua. Quando saiu, evitou a região próxima daquela rua. Porém uma dúvida ainda pairava sobre sua cabeça, será que tinham mesmo visto ele? Ele viu um vulto na janela, mas a luz estava apagada, a única iluminação era a da rua. Aquilo podia muito bem ter sido sua imaginação, mas o que mais o deixava com certeza da impunidade era ninguém ter procurado por ele. O tempo só lha dava mais certeza de tudo não passara de ilusão. Quatro meses depois, ele achou que poderia voltar a freqüentar novamente as redondezas daquela casa, principalmente porque lá era o local onde ele conseguia mais sucata.

Desde aquela manhã quando Bruno esclareceu-o sobre o ocorrido, Tiago ficava no portão esperando pelo catador de papelão todas as manhãs. Ele não foi à Polícia, pois achou que eles têm coisas mais importantes a fazer. Não foi atrás do catador, porque também poderiam avisá-lo e ele fugiria. Com o tempo, ele ficaria mais confiante, apareceria e aprenderia a não mexer mais nas coisas alheias. Tiago estava juntando dinheiro para comprar um novo portão porque a reforma tinha ficado muito cara e acabou com todos os seus recursos. Assim que tivesse todo o dinheiro da entrada, venderia o portão antigo, para ajudar no pagamento do novo. Se o portão tivesse sido roubado, todos os seus planos iriam por água abaixo e esse era um motivo que não deixava a raiva de Tiago amainar.

Bruno acordou mais cedo naquela manhã e ao olhar pela janela, percebeu que Tiago estava no portão. Ele então se aprontou e foi ver se o amigo ainda estava naquela espera vazia ao delinqüente que havia tentado roubá-lo. – Desencana Tiagão! O cara não vai aparecer. Como se fosse uma afronta aos dois amigos, o catador de papelão apontou seu carrinho na esquina da rua. Os dois saíram em disparada correndo atrás de Robinho que deixou o carrinho de papelão lotado e saiu em disparada o mais rápido que pode. Robinho tropeçou e os dois amigos o alcançaram. Sem dizer uma única palavra, foram batendo em Robinho e descontando toda a raiva que tinha acumulado durante aqueles quatro meses. Ele apanhou durante trinta minutos, foi socorrido duas horas depois, chegou ao hospital quatro horas depois e demorou mais duas horas para ser atendido, levou cinqüenta e oito pontos e os dois braços foram engessados. Depois de três dias em coma, Robinho morreu. Nenhum parente ou amigo reclamou o corpo. Foi enterrado como indigente três dias depois. Ninguém viu quem o espancou.

Tiago e Bruno voltaram pra casa, lavaram as mãos e foram trabalhar. Até hoje comentam sobre a surra que deram no ladrão que tentou roubar o portão de Tiago. Três meses depois Tiago mandou instalar o portão novo. O portão velho foi parar no ferro-velho que um dia pertenceu a Robinho.

4 comentários:

Divã do Masini disse...

uauuuuuuu..

Como isso aqui ficou movimentado. só falta, agora, você voltar às quartas para o Divã.

Adorei a editoria "pitacos do dia", afinal, um cara politizado não pode deixar de dar umas lambadas no cenário nacional.


abraçosssss

Amalio Damas disse...

Valeu meu irmão! Agora que eu animei, ninguém me segura!! As quartas...isssssssspéra!A coisa ainda tá meio confusa aqui em Sampa, mas eu tô tentando me organizar. Um abraço!

Maria Angélica disse...

FOi vc mesmo que escreveu isso? Eita, o homem dos sete instrumentos!
Bme no meio do texto dá uma impressão de estar lendo "Crime e Castigo", mas foi bem mais realista do desfecho.

Amalio Damas disse...

Foi sim, tive inspiração aqui na minha rua mesmo. Felizmente o final não foi tão trágico. Caramba! Dostoievisk! Que honra! Apesar de ainda não ter lido Crime e Castigo, agradeço o elogio.