quinta-feira, 7 de maio de 2009

Requiém.

Abro a janela do meu carro e jogo o papel de bala na rua. Um transeunte me olha com cara de desaprovação, mas provavelmente também deixa lixo na rua todos os dias e eu é que não vou ser mais um salvador da humanidade. Fiquei a vida inteira guardando papeizinhos nos bolsos, colocando saquinho de lixo no carro e pra quê? Pra ver todos os dias sem falta, sofás, colchões e garrafas PET boiando no rio Pinheiros. Porque preservar alguma coisa se desde pequenos, todos os cidadãos dessa terra são educados a jogar seus dejetos nas ruas. Que se dane! A partir de hoje meu carro e meus bolsos sempre andarão limpos. Eu vou morrer mesmo.

Trabalhei a vida inteira para criar dois filhos inúteis. Dei a melhor alimentação, os melhores médicos, a melhor educação, proporcionei viagens para que eles aprendessem outros idiomas e o que isso adiantou. O caçula só quer saber de baladas e de comprar carros novos para mostrar aos amigos, igualmente inúteis. A mais velha só quer saber de shoppings e compras. Quando vão à empresa que será deles daqui a alguns anos, só sabem desfilar e receber elogios dos medrosos que não querem perder o emprego ao contrariá-los, mesmo sabendo que algumas decisões tomadas pelos dois são idiotas e podem gerar prejuízo para a empresa. Que se dane! O problema agora é deles, eu já fiz a minha parte. Eu vou morrer mesmo.

Casei com uma mulher que nunca gostou de mim. Conheci-a quando já tinha alguns bens e a empresa já estava consolidada. Pensei que tinha encontrado o amor da minha vida. Nunca a traí. Porém, com o passar do tempo, ela mostrou sua verdadeira cara. Nos momentos de crise apenas me atacava, nunca perguntou se poderia ajudar em algo. Seus únicos pensamentos são manter o status de socialite e sair nas melhores revistas e fazer plásticas. Santo Deus! Se ela soubesse o quanto está ridícula com aquela cara esticada, paralisada pelo botox e aqueles seios falsos, não sairia nem as ruas. Mas não, toda semana ele tem que aparecer em alguma revista, coluna de jornal ou site de fofocas. Hoje mesmo vou arranjar uma amante. Que se dane! Hoje mesmo vou arranjar uma amante. Eu vou morrer mesmo.

Meus amigos são todos interesseiros sem exceção. Só aparecem nas festas, nos campos de golfe, nas reuniões para tratar de negócios, nos happy hours e nas festas de confraternização. As únicas amizades que fazemos de verdade são aquelas da infância, porque são feitas sem nenhum interesse, apenas para conversar, brincar e aprontar. Mas essas eu perdi quando subi na vida, porque a origem humilde de todos e que também foi a minha acabou afastando-os quando alcancei certo status social. Na minha ingenuidade, pensei que isso não impediria a manutenção dos laços de amizade, mas fui derrotado pelo preconceito e a incompreensão das pessoas. Que se dane! No próximo churrasco, vou chamar todos os meus amigos da escola, pobre, miseráveis ou não. Eu vou morrer mesmo.

Quando montei a minha empresa não tinha idéia de que ela se tornaria uma das maiores do Brasil. Apenas queria ter uma fonte de renda que me desse conforto e pudesse empregar alguns trabalhadores. Mas a gente nunca está satisfeito com o que tem e sempre quer mais, pensando que um monte de dinheiro pode curar todas as feridas. Hoje, quando passo pelos corredores da empresa, vejo muitos funcionários dos quais não sei nem o nome. Muitos devem acreditar que me cumprimentando ou sendo simpáticos poderão ter alguma oportunidade, embora isso só ocorra em novelas. Infelizmente eles terão que ficar subordinados aos seus chefes, em sua maioria medíocres, que nunca enxergarão na verdade o potencial que cada um tem e a contribuição que poderiam dar a empresa. Quando participo das incansáveis reuniões de diretoria, vejo 80% de bajuladores que apenas balançam a cabeça, 15% de alpinistas que só pensam em pisar na cabeça dos outros para subir de cargo e 5% que realmente querem fazer alguma contribuição. Deixo tudo isso para os meus dois filhos que com certeza falirão a empresa. Que se dane! Deixo tudo isso para os meus dois filhos que com certeza falirão a empresa. Eu vou morrer mesmo.

Ao nos darmos conta de nossa mortalidade, revemos tudo aquilo que imaginamos para nossa vida e comparamos os sonhos à realidade. Na maioria das vezes, os sonhos não se realizam ou apenas se realizam em parte. O mais importante na vida é deixarmos um legado, algo a ser seguido por outras pessoas ou por nossos filhos. Na maioria das vezes construímos empresas pensando que essa será nossa contribuição, mas quando olhamos para elas, são apenas máquinas vorazes de ganhar dinheiro, que não se importam com seus funcionários, sua comunidade, somente com sua sobrevivência.

Quando vejo que a única coisa que realmente construí foi isso, eu choro e espero ela chegar numa noite escura, numa tarde chuvosa, num dia de sol ou numa manhã de inverno, com sua foice e sua capa escura. Pensando bem, se a morte aparecer desse jeito mesmo, a única coisa que tentarei fazer é dar risada, porque essa imagem que foi criada e difundida é ridícula, parece um monge fazendeiro ou coisa que o valha. Acho que a morte deve ser algo como dormir um sono profundo sem direito a sonhos ou pesadelos. A única coisa da qual tenho certeza absoluta é que meu tempo acabou e agora é tarde pra se arrepender.

Imagens: Google.

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